9 de mar. de 2006

O moderno Prometeu


As novas mídias, particularmente os videogames, são o palco de revolucionárias experiências narrativas que imprimem um quê de inteligência em personagens originalmente descerebrados

Desde tempos imemoriais, narradores já encantavam platéias ao redor de uma fogueira pré-histórica, contando façanhas de caçadas. Relatos de guerra, cantigas de ninar, cancioneiros da corte... Contar histórias sempre foi um dos fortes atrativos da humanidade ao longo de sua evolução. Mas foi o filósofo grego Aristóteles o primeiro a definir a atividade, estabelecendo uma estrutura básica de causalidade para as narrativas, que passaram a ter um começo, meio e fim.

Contar histórias é criar mundos. O termo "diegese" serve para designar a criação não apenas da história em si, mas de todo o universo ficcional associado a ela. Que o diga J.R.R. Tolkien, o autor inglês que inventou uma nova língua e imaginou mapas para dar mais consistência a sua particular história de elfos, anões e guerreiros.

Isso significa que, na criação de mundos, existe sempre uma etapa anterior à fagulha inicial em que é feita uma representação "a priori" do conteúdo narrativo, ou seja, a definição dos detalhes e formas do universo criado. E é exatamente nesta ante-sala onde é moldado o caráter das personagens.

A manutenção coerente das características psicológicas, em suportes convencionais, é tarefa razoavelmente tranqüila, mas como administrar o temperamento de uma personagem numa "narrativa líquida"? Neste caso, a inteligência artificial pode ser de grande serventia. No planejamento narrativo em tempo real - novidade introduzida pelas novas mídias - a personalidade das personagens é especificada por valores numéricos que mudam no decorrer da história. Personalidade e enredo, portanto, nunca estiveram tão intricados e nunca tiveram tamanho grau de dependência. A relação de simbiose entre personagem e enredo sugere que qualquer tentativa de se criar entretenimento interativo focando apenas um dos dois elementos está condenada ao completo fracasso.

Nas mídias tradicionais, qualquer imprevisto na estrutura dramática - ou qualquer fato emergente - pode anular totalmente a plausibilidade da história. Segundo os formalistas russos, a relação de causalidade entre personagens e eventos é a principal característica de uma narrativa. Tomachevski, por exemplo, dividiu a obra em dois planos: o plano da fábula, um conjunto de acontecimentos organizados cronologicamente; e o plano do enredo, composto pelos mesmos acontecimentos, mas focado nos detalhes do instante dramático. No cinema clássico, o enredo (syuzhet) é tão importante quanto a fábula geral no processo de construção de causalidade.

Mas, no mundo dos novos meios audiovisuais (especificamente os videogames), essa teoria começa a solapar, pois hoje é possível elaborar causalidades em tempo real, com a intervenção dos jogadores reais ou "iniciativa" de atores virtuais. Para enfrentar os novos desafios narrativos, pesquisadores como Michael Young, professor da Universidade da Carolina do Norte e coordenador do Liquid Narrative Group, elaborou o Mimesis, um sistema de planejamento automático de enredos, com monitoramento de atos falhos. Em mídias tradicionais, não existe a possibilidade de escolher múltiplos destinos; nos videogames, porém, os gráficos das ações - chamado espaço de estados - podem dividir-se em duas ou mais vertentes. Na representação narrativa criada por esses programas, o plano de ação não é apenas um procedimento para a resolução de problemas, mas serve também para formar um conjunto de potenciais instâncias narrativas, escolhidas quase a dedo por um programa de busca, como o Google ou Altavista. Entretanto, garantir a compatibilidade entre as ações do protagonista num gráfico de espaço de estados é uma tarefa nada trivial.

Na prática, imagine um suposto videogame em que o protagonista está isolado numa ilha separada do continente por uma ponte elevadiça que pode ser baixada mediante o pagamento de um dado valor. A missão do personagem, que tem apenas uma moeda, é conseguir sair da ilha. Entretanto, ele está morrendo de sede e encontra uma daquelas máquinas de refrigerantes antes de chegar à ponte. Se ele usar a moeda para matar a sede, não vai conseguir executar o objetivo. O programa reconhece a possível "ação ameaçadora" e cria automaticamente um mecanismo que garanta o sucesso da etapa. O programa pode forçar o enguiço da máquina, por exemplo. Se a pré-condição de "comprar" é a posse de uma moeda e o efeito desejado da ação é o agente receber um objeto em troca, o algoritmo deve mudá-la para obrigar a máquina a devolver a moeda. Seria a verdadeira aplicação do ditado "escrever certo por linhas tortas".

A diferença entre a estrutura narrativa dos modelos computacionais e mentais são muito diferentes. O processo cognitivo é diferente. Pesquisadores estão diminuindo essa distância com programas e algoritmos elaborados para conduzirem automaticamente um enredo, com ou sem a intervenção do jogador. Há várias frentes de batalha. A antiga máquina de estados finitos, representada por um gráfico com todas as possibilidades de ações primárias e secundárias, está perdendo para mecanismos que realizam buscas em "árvores de situações" e encontram, em tempo real, ações condizentes com a personalidade da personagem.

Nada como as comédias de situação para usar o planejador automático, pois na maioria das vezes são calcadas em estruturas narrativas simples. No paper AI-based Animation for Interactive Storytelling, o pesquisador Marc Cavazza mostra como as táticas de conquista amorosa de um dos personagens do seriado "Friends" funcionam dentro do "Unreal Tournament", videogame com componentes de inteligência artificial. Ross, que está paquerando Rachel, precisa reunir informações antes de tomar a iniciativa e, para isso, tem ao seu alcance algumas opções, como ler o diário dela ou fazer perguntas a uma amiga em comum (Phoebe). No processo de busca, o algoritmo vasculha os terminais do gráfico que correspondem ao instante específico e escolhe a melhor seqüência para a ação. Se o jogador esconder o diário de Rachel, planos secundários compatíveis deverão estar disponíveis.

Um plano é uma estrutura de dados que parcialmente especifica as ações e o papel das personagens, objetos e locações numa determinada história. O plano, por sua vez, é dividido por etapas. O planejamento narrativo elaborado pelo algoritmo DPOCL (Decompositional Partial-Order Causal-Link Planner), criado por Young, decompõe a história em vários estágios e cenas e preenche os vácuos do plano primário, de maneira que o resultado seja compatível com o contexto geral que está sendo construído. O Longbow é outro sistema de planejamento hierárquico que combina o raciocínio da decomposição e o raciocínio causal na mesma representação narrativa. Mais do que planejar, o programa deve ter a capacidade de recuperar a linha narrativa ocasionada por atos falhos das personagens.

Segundo uma matéria da BBC publicada no ano passado, empresas de videogames já começaram a desenvolver o que se pode chamar de "jogos infinitos". O próprio Young sugere que os roteiristas de jogos criem apenas a base da interação entre personagens e objetos, mas que deixem os possíveis resultados, eventos e relações serem "reescritos em pleno vôo" com base nas ações do jogador. Pequenas ações não devem influenciar o enredo, mas a morte de um guerreiro inimigo, por exemplo, pode alterar completamente a composição da história. Para provar sua tese, Young e outros pesquisadores já estão modificando os fundamentos da teoria narrativa com um novo jogo-conceito baseado no clássico mediaval anglo-saxão Beowulf.



Guilherme Kujawski